quarta-feira, 10 de março de 2010

Curitiba e o Trânsito

No mundo moderno, com o fenômeno da urbanização acentuado a partir da Revolução Industrial e da conseqüente concentração de pessoas e atividades econômicas nas cidades, um dos fatores que mais diretamente afetam a qualidade de vida nos grandes centros urbanos é o trânsito.

Só para rememorar alguns dados e contextualizar, estima-se que pouco mais da metade da população mundial viva hoje em cidades (na América Latina são 75%), contra apenas 1,7% por volta de 1850. Em 2005 havia em torno de 350 cidades com mais 1 milhão de pessoas, totalizando algo entre 800 milhões e 1 bilhão de habitantes em grandes centros urbanos.

E os que moram nestas grandes cidades dificilmente estão livres de, em um momento ou outro, fazer parte deste contingente móvel de pedestres, motoristas, passageiros, veículos, cargas e até pilotos, malucos e, em alguns lugares, animais (nos dois sentidos da palavra).

Mesmo aqueles que, dependendo da rotina e valendo-se dos meios de comunicação atuais – em especial a internet, trabalham em casa parcial ou integralmente, não têm como deixar de ir ao banco, ao mercado, à farmácia, ao restaurante, ao médico, passear, ... Todos se misturam no inesgotável vaivém destes formigueiros em plena atividade.

Acontece que, ao contrário dos formigueiros, cada aglomerado humano tem sua própria organização e funcionamento. Dependendo da situação geográfica (localização, topografia, área, solo, rios, etc.), clima, história, cultura, governo, economia, leis, infra-estrutura, zoneamento, distribuição, arquitetura, meios de locomoção, programas, planejamento, demandas, etc., cada cidade grande se faz única, embora mantendo semelhanças com outras.

E tudo isto acaba por determinar como o liquidificador do trânsito vai misturar e bater os seus ingredientes, com o perdão do trocadilho. Roma, Los Angeles, Tóquio, só para ficar em exemplos bem conhecidos. Entendeu a diferença?

Mas é interessante notar que cada cidade desenvolve o que podemos chamar de “cultura de trânsito”. É a forma como a maioria dos seus motoristas, condutores, passageiros e pedestres participam e se relacionam quando participando do trânsito. É uma espécie de código informal não escrito, mas que prevalece na maneira como as pessoas interagem no dia-a-dia do trânsito.

Em Hanói, Vietnã, o trânsito é majoritariamente composto por pequenas motocicletas e o povo anda buzinando o tempo todo. É como se as buzinas fossem os radares que guiam uma enorme revoada de morcegos voando à noite no meio de uma mata. Apesar do aparente caos e da iminência de choques contra árvores, rochas e outros morcegos, nenhum deles colide e tudo funciona milagrosamente bem.

De maneira similar ao que se passa com os morcegos - que, porém, agem por instinto, em Hanói a cultura de trânsito que prevalece é impessoal e o que vale é a observância à regra vigente. As buzinadas e manobras individuais são percebidas por todos como parte normal do funcionamento do fluxo e não são tomadas como algo pessoal ou que afronte a individualidade do outro.

Dizem que em Roma o trânsito é um caos real, que as autoridades vivem tentando organizar sem grande sucesso. De certo, reflexo da cultura, ao menos em parte. Talvez os italianos até gesticulem bastante (obscenamente) e xinguem-se uns aos outros, mas de forma ‘razoavelmente civilizada’. Lá o comportamento no trânsito talvez seja menos impessoal, mas ainda assim cada qual tentando chegar ao seu destino sem tomar as coisas no plano individual.

Em São Paulo a coisa também é bem complicada, porém mais pelo volume do que propriamente pela falta de ordem ou obediência às regras. De qualquer forma é interessante notar que lá, apesar de todo o congestionamento, das horas paradas em engarrafamentos, etc., as pessoas cooperam umas com as outras de uma maneira geral. Como em qualquer lugar há conflitos, é claro, neste caso em especial entre carros e motos, mas em geral os indivíduos sabem ceder em benefício de todos.

Usando aqui a teoria da Darwin de maneira ilustrativa, talvez São Paulo tenha passado para um estágio em que suas ‘criaturas’ foram selecionadas de tal forma que ficaram aquelas aptas à cooperar entre si, caso contrário não funcionaria e a cidade literalmente pararia. E aquelas não adaptadas – não aptas a cooperar, são uma minoria e são forçadas a agir como as demais, pois estão inseridas neste contexto.

Lá, se um motorista sinaliza que deseja mudar de faixa, os demais aceitam esta solicitação e o permitem tal manobra. Se alguém pretende entrar em uma via, sem grandes dificuldades consegue fazê-lo, pois os que nela vêm permitem que isto aconteça. E assim podemos elencar outros exemplos similares.

Então, apesar de todas as dificuldades, pode-se concluir com boa margem de segurança que o paulistano médio em geral tem uma ‘cultura de trânsito cooperativa’. Apesar de haver mais ‘interação’ entre as pessoas na forma como se comportam no trânsito, em comparação a Hanói (onde se age de forma mais automática), ainda assim entende-se que há um objetivo maior – a fluidez do trânsito, sem a qual ninguém chega a lugar algum.

Mas, na Cidade Sorriso de Dentes Afiados, a linda e organizada Curitiba, a coisa é bem diferente. O clima vigente é de disputa, de competição, de animosidade.

Aqui não há tamanhos congestionamentos como, por exemplo, em São Paulo, Cidade do México ou Nova York – as dimensões da cidade e seus números são bem menores. De maneira geral, a cidade é bem organizada e sinalizada, e as vias são boas. Não há metrô subterrâneo, mas o tão famoso sistema de transporte coletivo atende razoavelmente bem à demanda da população.

O IDH-M de Curitiba (índice de desenvolvimento humano dos municípios) está no topo da tabela, tanto em relação aos mais de 5.400 municípios brasileiros, quanto em comparação às demais capitais. Em linhas gerais é uma sociedade bem estruturada, a despeito dos seus defeitos e problemas. Então pergunta-se, não deveria ser mais “civilizado” transitar por aqui?

Em termos de velocidade média ou o tempo que se leva para ir de um lado ao outro da cidade, pode-se dizer que ainda temos alguma vantagem sobre outras grandes capitais. O 'entupimento' ainda não é tão crítico. Mas do ponto de vista de stress, aborrecimento e confusão, pode-se dizer que aqui é muito pior do que em outros lugares.

Falando 'tecnicamente', com base na observação do dia-a-dia, o curitibano dirige relativamente bem. As pessoas respeitam as faixas individuais, sinalizam as conversões, comportam-se de maneira razoavelmente organizada. Não que não se cometam barbeiragens, infrações, etc. Quero dizer que a 'coisa' funciona e não é uma bagunça geral.

O problema é o comportamento. Em termos curitibanos, a chamada cultura do trânsito, acima mencionada, é caracterizada não só por um individualismo exacerbado (a falta de desejo de cooperação e solidariedade), mas mais do que isso, por um desejo claro de mostrar ao outro que ele não tem vez.

Falando do relacionamento entre motoristas e condutores, para o curitibano em geral, deixar que outro veículo tome a frente, ceder espaço, dar a vez ao ‘inimigo’ do veículo ao lado, mesmo que este o peça de forma adequada ou solicite gentilmente, é como se lhe estivessem insultando, desrespeitando, enganando, roubando-lhe a dignidade, afrontando. Aqui não, meu amigo, aqui quem manda sou eu! O mesmo ocorre entre carros e motos, motos e pedestres, carros e ônibus, ...

Outra coisa é a 'cultura do carro'. Todos querem ter carro. Carro, carro, carro. Mesmo quem não tem condições financeiras para isto ou que deveria priorizar outros gastos (educação, saúde, etc.), investe para ter um. O indivíduo mora numa casa feia, precisando de pintura e o portão caindo aos pedaços, mas o carro novo tá lindão lá na garagem.

E os pedestres e ciclistas são uma classe inferior. Claro que a maioria dos pedestres também não respeita as regras e com isto perde respeito. Mas na lei de trânsito o pedestre deveria ter prioridade - é a parte mais frágil. Só que experimente colocar o pé em uma rua de Curitiba quando vem um veículo motorizado: passam por cima e ainda lhe xingam.

E desta forma multiplicam-se as brigas, agressões verbais e físicas, pequenos acidentes, xingamentos, caras de ódio, gastrites, dores de cabeça, ansiedade, medo e estresse. O fato concreto é que participar do trânsito de Curitiba, seja como pedestre, motorista ou passageiro, é receita quase certa de algum aborrecimento.

Assim a cidade intitulada de “Sorriso” e mundialmente conhecida como modelo, vai mostrando uma outra face, agressiva, de pessoas não dispostas à gentileza e a ceder um pouco. Isto deve dizer muito sobre sua história e desenvolvimento, bem como das influências que recebeu. É possível especular-se sobre as razões deste comportamento coletivo (raízes, culturas, ...), mas fica para outro ensaio.

E depois, muito curitibano – de origem ou por adoção - não concorda com a impressão das pessoas de fora de que aqui é uma cidade ‘fria’ em termos de receptividade e relacionamento humano. Certamente não é por falta de uma boa discussão!

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